quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

“Nunca foi tão bom estar comigo”, por Guilherme Moreira Jr

Cada vez mais percebo o quanto tenho ficado próxima de mim. Andei negligenciando a minha presença, mas isso mudou. Hoje, não só fiz as pazes comigo, como também aproveitei para traçar novos caminhos e sentimentos que preciso para a minha vida respirar sentido.

A verdade é que eu senti a minha falta por tempo demais. Não desperdicei instantes e afetos mas, sinceramente, deveria ter reservado um pouco das minhas melhores versões para os dias difíceis. Porque é normal desistir, não querer mais ou não achar mais atrativa alguma escolha. Eu não sou obrigada a seguir os passos dos outros. E também não assinei nenhum contrato permitindo que a minha energia seja sugada por quem pouco ou nada fez para os meus sorrisos.

Acho que mereço um descanso. Não me vejo como um alguém egoísta. Agora, tenho a maturidade necessária para vestir intensidades e para tratar como prioridade os planos e sonhos que acumulei. Quero paz, alguns silêncios e um amor para acompanhar. Mas não me iludo. Não quero nenhuma dessas coisas se isso custar o meu ímpeto pela vida. É importante mencionar, a liberdade de deixar os sentimentos comandarem sempre esteve dentro de mim.

Às vezes acabo me cobrando muito. Acabo deslizando e deixando a correria e o peso da dúvida entrarem no coração. Até que me dou conta do óbvio, só eu posso sair dessa situação. Como? Dedicando cumplicidades e respeitos e pela minha pessoa. Não existindo apenas para cumprir obrigações e outros tratos diários. Quando tenho vontade, bebo um excesso de loucura. Viajo, faço uma maratona de filmes, saio sozinha, fico em casa olhando pro teto, não importa. Procuro achar graça em coisas comuns e é assim que tento viver.

Então, ao fim de tudo, tento não esquecer de quem sobrevive todos os dias com o coração na mão e alma estampada nos olhos, eu. É de mim que preciso cuidar, ansiar e permanecer. E quer saber? Nunca foi tão bom estar comigo.


Guilherme Moreira Jr/ contioutra.com

segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

Kintsugi: a beleza das cicatrizes da vida

Em uma época dominada por consumismo e obsolescência programada, o mais provável é que, se um dia você levantar com o pé esquerdo, tropeçar e deixar cair a xícara do café, simplesmente se resignará a juntar os pedaços e a jogá-los no lixo. Algo impensável no Japão.

Há cinco séculos, surgiu no Extremo Oriente o kintsugi, uma apreciada técnica artesanal com o objetivo de reparar uma tigela de cerâmica quebrada. Seu proprietário, o xogum Ashikaga Yoshimasa, muito apegado a esse objeto indispensável para a cerimônia do chá, mandou consertá-lo na China, onde se limitaram a fixá-lo com alguns grampos toscos. Insatisfeito com o resultado, o senhor feudal recorreu aos artesãos de seu país, que propuseram finalmente uma solução atrativa e duradoura.

Encaixando e unindo os fragmentos com um verniz polvilhado com ouro, eles restauraram a forma original da cerâmica, embora as cicatrizes douradas e visíveis tenham transformado sua essência estética, evocando o desgaste que o tempo provoca sobre as coisas físicas, a mutabilidade da identidade e o valor da imperfeição. Assim, em vez de dissimular as linhas de fissura, as peças tratadas com esse método exibem as feridas de seu passado, adquirindo uma nova vida. Tornam-se únicas e, portanto, ganham beleza e intensidade. Alguns objetos tratados com o método tradicional do kintsugi– também conhecido como “carpintaria de ouro” – inclusive chegaram a ser mais apreciados que antes de quebrar. Desse modo, a técnica se transformou numa potente metáfora da importância da resistência e do amor próprio frente às adversidades.

A filosofia vinculada ao kintsugi pode se aplicar à nossa vida atual, repleta de ânsias de perfeição. Ao longo do tempo, conhecemos fracassos, desenganos e perdas. Mas pretendemos esconder nossa natureza frágil, que nos faz mais humanos e autênticos, sob a máscara da infalibilidade e do sucesso. Ocultamos os defeitos, embora tenhamos falhas desde que nascemos.
O jornalista alemão Adam Soboczynski diz no livro El Arte de No Decir la Verdad (a arte de não dizer a verdade) que aprendemos a camuflar “com grande esforço, e mantendo a compostura, inclusive a mais terrível das comoções que nos atingem”.

Somos vulneráveis não apenas do ponto de vista físico, mas também psíquico. Quando as adversidades nos superam, nos sentimos quebrados. Às vezes, é o acaso que nos leva ao ponto de ruptura; em outras, somos nós mesmos, com nossas elevadas expectativas não realizadas e a avidez do novo, que complicamos a nossa vida. O filósofo catalão Josep Maria Esquirol afirma que “a memória e a imaginação são as melhores armas do resistente”. Como animais dotados de criatividade, temos uma poderosa ferramenta na capacidade de conceber alternativas à realidade. Quando sopram ventos ruins, contudo, o que mais nos ajuda a resistir à investida? Segundo a escritora norte-americana Joan Didion, a resposta é o verdadeiro amor próprio. As pessoas com essa qualidade “são duras, têm uma espécie de valentia moral; exibem essa faceta que antes se chamava personalidade”. E alcançar uma vida plena também envolve a capacidade de se livrar das expectativas alheias e deixar para trás a compulsão de agradar.

Não há recomposição nem ressurgimento sem paciência. No kintsugi, o processo de secagem é um fator determinante. A resina demora semanas, ou até meses, para endurecer. É o que garante a coesão e a durabilidade. Entre os cultivadores da paciência, Kafka ocupa um lugar de destaque. Para ele, a capacidade de saber sofrer e tolerar infortúnios era a chave para enfrentar qualquer situação. Um dia, enquanto passeava com um amigo, Kafka lhe deu um conselho: “É preciso deixar-se levar por tudo, entregar-se a tudo, mas conservando a calma e tendo paciência. Só há uma forma de superação, que começa superando-se a si mesmo”. A receita para viver do autor de O Processo é simples, mas nem por isso menos difícil: “Temos que absorver tudo pacientemente em nosso interior, e crescer.”

Saber valorizar o que se rompe em nós traz uma serenidade objetiva. Gostemos de nós como somos: quebrados e novos, únicos, insubstituíveis, em permanente mudança.


Por MARTA REBÓN/El País

segunda-feira, 30 de outubro de 2017

“Encerrando Ciclos”

   
Sempre é preciso saber quando uma etapa chega ao final. Se insistirmos em permanecer nela mais do que o tempo necessário, perdemos a alegria e o sentido das outras etapas que precisamos viver. Encerrando ciclos, fechando portas, terminando capítulos - não importa o nome que damos, o que importa é deixar no passado os momentos da vida que já se acabaram...

Você pode passar muito tempo se perguntando por que isso aconteceu. Pode dizer para si mesmo que não dará mais um passo enquanto não entender as razões que levaram certas coisas, que eram tão importantes e sólidas em sua vida, serem subitamente transformadas em pó. Mas tal atitude será um desgaste imenso para todos: seus pais, seu marido ou sua esposa, seus amigos, seus filhos, sua irmã, todos estarão encerrando capítulos, virando a folha, seguindo adiante, e todos sofrerão ao ver que você está parado.

Ninguém pode estar ao mesmo tempo no presente e no passado, nem mesmo quando tentamos entender as coisas que acontecem conosco. O que passou não voltará: não podemos ser eternamente meninos, adolescentes tardios, filhos que se sentem culpados ou rancorosos com os pais, amantes que revivem noite e dia uma ligação com quem já foi embora e não tem a menor intenção de voltar.

As coisas passam, e o melhor que fazemos é deixar que elas realmente possam ir embora. Por isso é tão importante (por mais doloroso que seja!) destruir recordações, mudar de casa, dar muitas coisas para orfanatos, vender ou doar os livros que tem. Tudo neste mundo visível é uma manifestação do mundo invisível, do que está acontecendo em nosso coração - e o desfazer-se de certas lembranças significa também abrir espaço para que outras tomem o seu lugar... Deixar ir embora. Soltar. Desprender-se. 
Encerrando ciclos. Não por causa do orgulho, por incapacidade, ou por soberba, mas porque simplesmente aquilo já não se encaixa mais na sua vida. Feche a porta, mude o disco, limpe a casa, sacuda a poeira. Deixe de ser quem era, e se transforme em quem é.

Sonia Hurtado - jornalista 

terça-feira, 8 de agosto de 2017

Por que deveríamos ler “Minha Luta” de Hitler

As fotos em preto e branco e os vídeos borrados dão impressão de que a Segunda Guerra Mundial aconteceu há muito tempo e já está devidamente enterrada no jardim da História. Mas década de 1940 não está tão longe assim de nós: é muito provável que familiares e conhecidos de você, caro leitor, já eram nascidos enquanto o conflito global acontecia. Em termos históricos, somos praticamente contemporâneos das milhões de mortes de soldados e civis, da bomba atômica e do genocídio sistemático de judeus, homossexuais, eslavos, ciganos e outras minorias. O fantasma do nazismo e o horror liderado pelo ditador austríaco Adolf Hitler, infelizmente, ainda nos assombram.

Parece difícil entender como a nação que foi o berço de Johan Bach, Ludwig van Beethoven, Immanuel Kant, Friedrich Hegel e Albert Einstein também tenha abrigado uma ideologia sustentada a partir do ultranacionalismo e de pseudoteorias raciais para empreender perseguições e assassinatos em massa.
Mais espantoso ainda é saber que Hitler não chegou ao poder por conta de um golpe de Estado ou de uma conspiração militar: em 1932, ele recebeu mais de 13 milhões de votos durante as eleições presidenciais da Alemanha, ficando na segunda colocação da disputa, e deputados do Partido Nazista conseguiram dezenas de cadeiras no Parlamento – em 1933, com grande respaldo popular, Hitler seria nomeado chanceler alemão até tomar definitivamente o poder no ano seguinte e iniciar a perseguição a opositores políticos.

É verdade que o carisma e o poder da oratória de Hitler contribuíram para esse momento de “transe coletivo” da população alemã, mas a ascensão do Partido Nazista e os fatos que culminaram com a Segunda Guerra Mundial não devem ser entendidos como uma obra exclusiva do ditador. Afinal, quando Hitler chegou ao poder, a Alemanha passava por um momento de profunda crise política e econômica: as lembranças da derrota na Primeira Guerra Mundial ainda eram muito recentes e as pesadas sanções impostas por França e Inglaterra se refletiam nos altos índices de desemprego e na inflação incontrolável... Para piorar, o sistema político estava fragilizado e a população não confiava em seus representantes: o Partido Social-Democrata, ligado aos trabalhadores, estava no poder na década de 1920, mas não foi capaz de lidar com os anseios das classes populares.

Como momentos difíceis tendem a aprofundar radicalismos, a conjuntura alemã se tornou um terreno fértil para os discursos de um homem que tinha nascido na Áustria, mas lutado pela Alemanha durante a Primeira Guerra Mundial. Aos 36 anos, em 18 de julho de 1925, Adolf Hitler publicava Minha Luta, escrito durante o período de sua prisão após uma tentativa de rebelião na cidade de Munique, em 1923.
O livro se tornou o guia ideológico utilizado posteriormente pelo Partido Nazista e reunia a exaltalção do sentimento nacionalista baseado a partir de conceitos raciais, o revanchismo contra os países vitoriosos na Primeira Guerra e o funcionamento de um Estado totalitário que não permitia a diversidade política ou partidária.

Após a chegada de Hitler ao poder, os direitos autorais de Minha Luta foram transferidos para o estado da Baviera, que abriga a cidade de Munique. Com o fim da Segunda Guerra Mundial, a Alemanha iniciou uma campanha para destruir a herança nazista e impedir que iniciativas desse tipo voltassem a acontecer – até hoje, o Estado alemão se mantém distante de qualquer tipo de evocação política aos sentimentos nacionalistas. Durante 70 anos, o estado da Baviera proibiu que Minha Luta fosse reeditado e vendido, mas ao final de 2015 a obra caiu em domínio público e foi impressa por editoras de todo o mundo.

É compreensível e justa a preocupação alemã em não permitir que os ideais de Adolf Hitler e do Partido Nazista entrassem em contato com as novas gerações. Mas a leitura de Minha Luta pode, justamente, ser uma importante ferramenta para que os horrores passados não voltem a se repetir: em um momento global de crise econômica e desencanto com a política, não faltam discursos inflamados de pessoas que prometem respostas fáceis para questões complexas, estimulando o nacionalismo e o discurso de ódio contra aqueles que têm um pensamento diferente.

O conhecimento, então, se torna a arma fundamental para que a humanidade não enfrente outros pesadelos como aqueles vividos no século 20. Nesse caso, a História é ferramenta essencial para analisar o passado, entender o presente e transformar o futuro para melhor – Confere lá

sábado, 22 de julho de 2017

Sou efeito colateral de tudo o que eu não soube fazer

É uma qualidade não se limitar, querer sempre enxergar além.
Porém, são muitas as chances de cometer erros dentro dessa vontade de ter braços do tamanho do mundo e querer abraçá-lo.
O que não nos torna errados, apenas errantes.
Mas tudo bem, eu nunca quis mesmo me fechar dentre paredes que eu já conheço, sempre quis conhecer o universo como a palma da mão, mesmo que para isso eu tenha que fracassar diversas vezes.

É bom quando somos forçados a nos olhar de frente. Quando a vida coloca um espelho enorme na nossa direção e não temos outra opção se não nos encarar. É o momento de pensar se somos alguém que gostaríamos de conhecer ou se já não nos reconhecemos mais.

Nós somos feito de tudo o que não soubemos fazer. Pois, quando não sabíamos como prosseguir, moldamos nossa personalidade decidindo para onde ir: voltar e seguir para um lugar menos lamacento ou sacudir a poeira, repor as galochas e continuar seguindo rumo ao que antes sonhamos.

A gente nunca sabe quando vamos finalmente ser recompensados pelas nossas lutas, até que somos. Você saberia reconhecer a sua recompensa? Ou estaria tão ocupado reclamando do seu cansaço que passaria despercebido?

O entrelaço de tudo é que devemos nos orgulhar das nossas batalhas, ainda que sejam todas derrotas. Somos o que somos porque perdemos e agradeço por isso.
Cada gota escorrendo no meu rosto te conta quem eu sou. Seja de suor por tanto tentar ou lágrima por não conseguir.
Sou efeito colateral de tudo que não soube fazer, mas continuei tentando.
Por Najara Gomes postado no site CONTIoutra

sábado, 3 de junho de 2017

“Cada um enxerga a realidade como quer, não como ela é”

“Cria-se um significado quando muitas pessoas tecem juntas uma rede comum de histórias. Por que determinada ação -como casar-se, jejuar no Ramadã ou votar em um dia de eleições - parece significativa para mim? Porque meus pais também a consideram significativa, assim como meus irmãos, meus vizinhos, pessoas em cidades próximas e mesmo habitantes em países distantes. Por que todas essas pessoas pensam que isso é' tão significativo?

Porque seus amigos e vizinhos compartilham a mesma opinião. As pessoas reforçam constante e reciprocamente suas crenças, num ciclo que se autoperpetua. Cada rodada de cofirmação mútua estreita ainda mais a teia de significados, até não se ter muita opção a não ser acreditar naquilo em que todos acreditam.” – Trechos do Livro Homo Deus de Yuval Harari

Em assuntos que mexem com a emoção do sujeito – como futebol, religião ou política, por exemplo – o cérebro humano não assimila nem aceita informações e evidências que vão contra suas convicções, comentou a jornalista Malu Gaspar, sobre um estudo de neurociência que havia lido recentemente.

Ela deu como exemplo o racha que pudemos observar no dia do interrogatório de Lula ao juiz Sergio Moro. "Todo mundo assistiu ao mesmo depoimento, viu as mesmas imagens sobre manifestações a favor e contra Lula. Mas quem era pró-Lula acha que o depoimento foi um sucesso e o ex-presidente desnudou as verdadeiras intenções de Moro. Quem já era contra Lula celebrou o fracasso. E assim vamos confirmando a ciência."

A pesquisa foi conduzida pelo psicólogo Drew Western e um time de pesquisadores da Emory University, sediada em Atlanta (EUA), e o resultado apresentado na conferência anual da Sociedade de Psicologia Social e Personalidade.

Basicamente, os pesquisadores chegaram à seguinte conclusão: nós apenas procuramos evidências para confirmar e apoiar nossas crenças e ignoramos ou simplesmente reinterpretamos da forma que melhor nos convêm as provas que refutam nossas convicções.

Outros estudos conduzidos há pelo menos seis décadas que já mostravam o que os pesquisadores chamam de "viés da confirmação", o nosso cérebro descarta o que não combina com nossas opiniões e liga o radar apenas para aquilo que atesta nossas teses. Um deles, feito pela Universidade de Ohio, mostrou que passamos 36% mais tempo lendo algo que esteja alinhado com nossas ideias do que qualquer coisa que seja contrária a elas.

Ou seja, ninguém lê para se informar, apenas para ter razão. Nada do que os jornais digam, do que o noticiário mostre, nenhum tipo de comentário ou debate, por mais civilizado que seja, se revela minimamente eficaz porque o cidadão simplesmente não está interessado.

Vemos todos os dias isso pelo noticiário. Veículos de comunicação são atacados ora por coxinhas, ora por petralhas, sem falar dos bolsominions, dependendo da notícia que trazem em suas manchetes. Se ela agrada será compartilhada imediatamente. Do contrário, apenas serve para que a fonte seja desacreditada. Não serve. [...].

Passamos a ver interesses escusos e conspiração quando o "lado de lá" nos surpreende com posicionamentos com os quais concordamos. Abandonamos a busca da verdade porque é difícil assumir um erro ou mesmo encarar que se vive uma mentira, principalmente quando há tantas outras pessoas mergulhadas na mesma irracionalidade e o compromisso ideológico de se manter fiel a ideais.

Mais fácil manter a soberba, mesmo que descubra que tem sido manipulado por suas próprias emoções, mesmo que se dê conta que tem sido apenas um idiota vivendo de mentiras. Leia na íntegra 

terça-feira, 11 de abril de 2017

“Um dia eu e você fomos nós”, por Martha Medeiros

Nós viajávamos juntos em busca de trilhas distantes, nós descobríamos os detalhes de uma nova cidade percorrendo-a de bicicleta, nós tomávamos litros de vinho tinto durante o inverno gélido e também quando não fazia tanto frio assim, nós éramos os anfitriões dos amigos que vinham nos visitar e éramos, depois, a visita aguardada na casa deles, em retribuição.

Nós éramos torcedores do mesmo clube de futebol e, em alguns casos, não torcíamos para ninguém, apenas para nós mesmos. Nós – o nome do nosso time. Nós – uma espécie de identidade secreta. Nós – o elenco da peça em que atuávamos: uma história de amor para dois personagens principais.

Como quase sempre acontece, às vezes cedo demais, às vezes com atraso, o “nós” se desmembra e volta a ser apenas eu e apenas você, dois times distintos, duas identidades avulsas, dois personagens que já não contracenam. Um final triste, mas digerível – a vida é assim, fazer o quê.

E então um dia você telefona para seu antigo amor e escuta do outro lado da linha algo inacreditável como “Nós estamos de saída, poderia telefonar amanhã?”.

Você está falando com seu ex. Uma unidade. Que “nós” é esse que não se refere mais a você e ele juntos?
Seu antigo par formou um novo plural. Ele voltou a ser nós. Você ainda é só você, um singular.

Onde foi parar a misericórdia? A sensibilidade recomenda não anunciar a nova condição conjugal antes de todos os corações estarem cicatrizados. O uso do pronome pessoal pode ser uma forma sutil de dizer que a fila andou, mas não ameniza o golpe. 

Um amigo me contou esse baque pelo qual passou e estou tentando fazer uma narrativa refinada do seu desalento, transformá-lo em poesia, literatura, canção, sei lá, encontrar alguma análise confortante para esse “nós” que ele pescou no ar, durante uma conversa trivial, um “nós” que já havia sido dele e que agora não lhe pertencia mais.


Só que não há como confortar. É natural que sejamos exclusivistas e nostálgicos em relação ao “nós” que era nosso, aquele “nós” que depois entrou num vácuo, se desfez, silenciou. O fim simultâneo do que era seu e de outra pessoa foi o último ato de intimidade entre vocês. Até o surgimento deste outro “nós” que agora pertence só a eles dois – e que te dói – Revista O Globo domingo (9) – Enviado por Cacau Quil

domingo, 9 de abril de 2017

“A vida, o que é?” por Miriam Leitão

"A vida é boa, dura e curta". O homem que falou isso cercado de filhos tinha 98 anos. Aquele foi um dos últimos encontros de Florival com os sete filhos, entre eles, Carmen, que é conhecida no Brasil inteiro e presidente do Supremo. Definição sábia.

A vida é tão breve que parece rascunho, ensaio, tentativa. É como se o real da vida viesse após essa prévia preparação. Sabe-se  mais sobre ela depois que ela passa, quando, só então, entendemos o fundamental.

Se é ensaio, gostaríamos de corrigir alguns momentos, aqueles em que erramos feio, ou desafinamos. Faríamos melhor se ela voltasse um pouco, se houvesse uma tecla de retorno. Mas cada momento tem apenas a sua chance. É um texto sem correção, em que não podemos voltar nem para rever o ponto de uma vírgula. Na era pre-computador, as mudanças nos textos ficavam marcadas como cicatrizes, rabiscos enfeiando o papel. Na vida, nem essa correção com marcas podemos fazer.

Nos momentos em que ela é dura, duvidamos de tudo. Os dias difíceis e tristes são longos demais e nós, os seus prisioneiros. Na verdade pode ser uma nova chance. Uma amiga passou por uma doença que parecia fatal e ela lutou até vencer. Postou no Face a foto no hospital em momento de fraqueza, seu irmão ao lado, solidário, e escreveu que era ali o renascimento. Lembro de uma noite em que chorei pelas horas todas, até o fim da madrugada. No escuro, lamentei minha sorte. Uma demissão injusta e humilhante que me pareceu o fim da carreira. O resultado avesso dos esforços que fizera, o pagamento injusto do trabalho insano. Reneguei o passado, duvidei do futuro. E era véspera do começo do melhor tempo. Insone e triste, desperdicei o choro e lamentei em vão, porque aquela queda foi o impulso que me fez ficar de novo em pé e ir além do que sonhara. Há dores que são dores e só. Ficam como uma sombra.

Em tempo de alegria às vezes ficamos desatentos à abundância. Revejo o vídeo de um momento em que dançava feliz, comemorando um aniversário, anos atrás. Ao meu lado, na pista de dança, está um irmão que já não tenho. Voltasse eu àquele momento e o abraçaria mais uma vez e falaria do meu amor e ventura por tê-lo. Mas estou ali dançando, ao lado dele, distraída.

Às vezes a gente opõe partes da vida, como se uma roubasse tempo à outra, quando na verdade são fragmentos da mesma realidade. Ela é assim mesmo com suas muitas faces, suas alegrias diferentes, suas divisões. Ficamos divididos entre amores e entre deveres. E na divisão perdemos um pouco de cada prazer.

Há travos que ainda amargam, marcas que carregamos, alegrias que vão além do momento e a elas recorremos saudosos e gratos, há dificuldades que superamos, há inquietações que nos assombram em horas de fraqueza. Há tanto na vida que não se pode resumir numa manhã de sábado, principalmente quase se está como estou: assim repleta de gratidão pela vida que me é dada a cada dia. Por mais que eu tente hoje encontrar palavras de definição, me perco na complexidade e vastidão não dita. Ela é apenas o que é, e que o mineiro Florival definiu com exatidão nos seus pensamentos finais. Boa, dura e curta – Enviado por Cacau QuilCONFERE LA