terça-feira, 11 de abril de 2017

“Um dia eu e você fomos nós”, por Martha Medeiros

Nós viajávamos juntos em busca de trilhas distantes, nós descobríamos os detalhes de uma nova cidade percorrendo-a de bicicleta, nós tomávamos litros de vinho tinto durante o inverno gélido e também quando não fazia tanto frio assim, nós éramos os anfitriões dos amigos que vinham nos visitar e éramos, depois, a visita aguardada na casa deles, em retribuição.

Nós éramos torcedores do mesmo clube de futebol e, em alguns casos, não torcíamos para ninguém, apenas para nós mesmos. Nós – o nome do nosso time. Nós – uma espécie de identidade secreta. Nós – o elenco da peça em que atuávamos: uma história de amor para dois personagens principais.

Como quase sempre acontece, às vezes cedo demais, às vezes com atraso, o “nós” se desmembra e volta a ser apenas eu e apenas você, dois times distintos, duas identidades avulsas, dois personagens que já não contracenam. Um final triste, mas digerível – a vida é assim, fazer o quê.

E então um dia você telefona para seu antigo amor e escuta do outro lado da linha algo inacreditável como “Nós estamos de saída, poderia telefonar amanhã?”.

Você está falando com seu ex. Uma unidade. Que “nós” é esse que não se refere mais a você e ele juntos?
Seu antigo par formou um novo plural. Ele voltou a ser nós. Você ainda é só você, um singular.

Onde foi parar a misericórdia? A sensibilidade recomenda não anunciar a nova condição conjugal antes de todos os corações estarem cicatrizados. O uso do pronome pessoal pode ser uma forma sutil de dizer que a fila andou, mas não ameniza o golpe. 

Um amigo me contou esse baque pelo qual passou e estou tentando fazer uma narrativa refinada do seu desalento, transformá-lo em poesia, literatura, canção, sei lá, encontrar alguma análise confortante para esse “nós” que ele pescou no ar, durante uma conversa trivial, um “nós” que já havia sido dele e que agora não lhe pertencia mais.


Só que não há como confortar. É natural que sejamos exclusivistas e nostálgicos em relação ao “nós” que era nosso, aquele “nós” que depois entrou num vácuo, se desfez, silenciou. O fim simultâneo do que era seu e de outra pessoa foi o último ato de intimidade entre vocês. Até o surgimento deste outro “nós” que agora pertence só a eles dois – e que te dói – Revista O Globo domingo (9) – Enviado por Cacau Quil

domingo, 9 de abril de 2017

“A vida, o que é?” por Miriam Leitão

"A vida é boa, dura e curta". O homem que falou isso cercado de filhos tinha 98 anos. Aquele foi um dos últimos encontros de Florival com os sete filhos, entre eles, Carmen, que é conhecida no Brasil inteiro e presidente do Supremo. Definição sábia.

A vida é tão breve que parece rascunho, ensaio, tentativa. É como se o real da vida viesse após essa prévia preparação. Sabe-se  mais sobre ela depois que ela passa, quando, só então, entendemos o fundamental.

Se é ensaio, gostaríamos de corrigir alguns momentos, aqueles em que erramos feio, ou desafinamos. Faríamos melhor se ela voltasse um pouco, se houvesse uma tecla de retorno. Mas cada momento tem apenas a sua chance. É um texto sem correção, em que não podemos voltar nem para rever o ponto de uma vírgula. Na era pre-computador, as mudanças nos textos ficavam marcadas como cicatrizes, rabiscos enfeiando o papel. Na vida, nem essa correção com marcas podemos fazer.

Nos momentos em que ela é dura, duvidamos de tudo. Os dias difíceis e tristes são longos demais e nós, os seus prisioneiros. Na verdade pode ser uma nova chance. Uma amiga passou por uma doença que parecia fatal e ela lutou até vencer. Postou no Face a foto no hospital em momento de fraqueza, seu irmão ao lado, solidário, e escreveu que era ali o renascimento. Lembro de uma noite em que chorei pelas horas todas, até o fim da madrugada. No escuro, lamentei minha sorte. Uma demissão injusta e humilhante que me pareceu o fim da carreira. O resultado avesso dos esforços que fizera, o pagamento injusto do trabalho insano. Reneguei o passado, duvidei do futuro. E era véspera do começo do melhor tempo. Insone e triste, desperdicei o choro e lamentei em vão, porque aquela queda foi o impulso que me fez ficar de novo em pé e ir além do que sonhara. Há dores que são dores e só. Ficam como uma sombra.

Em tempo de alegria às vezes ficamos desatentos à abundância. Revejo o vídeo de um momento em que dançava feliz, comemorando um aniversário, anos atrás. Ao meu lado, na pista de dança, está um irmão que já não tenho. Voltasse eu àquele momento e o abraçaria mais uma vez e falaria do meu amor e ventura por tê-lo. Mas estou ali dançando, ao lado dele, distraída.

Às vezes a gente opõe partes da vida, como se uma roubasse tempo à outra, quando na verdade são fragmentos da mesma realidade. Ela é assim mesmo com suas muitas faces, suas alegrias diferentes, suas divisões. Ficamos divididos entre amores e entre deveres. E na divisão perdemos um pouco de cada prazer.

Há travos que ainda amargam, marcas que carregamos, alegrias que vão além do momento e a elas recorremos saudosos e gratos, há dificuldades que superamos, há inquietações que nos assombram em horas de fraqueza. Há tanto na vida que não se pode resumir numa manhã de sábado, principalmente quase se está como estou: assim repleta de gratidão pela vida que me é dada a cada dia. Por mais que eu tente hoje encontrar palavras de definição, me perco na complexidade e vastidão não dita. Ela é apenas o que é, e que o mineiro Florival definiu com exatidão nos seus pensamentos finais. Boa, dura e curta – Enviado por Cacau QuilCONFERE LA