terça-feira, 17 de maio de 2016

“Hipocrisia” por Luiz Fernando Verissimo

Durante muito tempo cultivou-se o mito do Brasil como uma espécie de jardim de inocentes num mundo conspurcado. Até no nosso autodesprezo havia um certo tom triunfal de uma raça diferente esperando sua vez de entrar na História. Éramos ineficientes mas simpáticos, atrasados mas cordatos, pobres mas engenhosos. Assim como a Amazônia era a reserva de oxigênio do planeta, o brasileiro era a sua reserva de candura. Conseguiríamos o milagre de nos transformarmos em potência sem cometer nenhum pecado antibrasileiro, como o da violência ou da insolência imperial. Nossos vilões nos roubaram este mito da amabilidade congênita. Certamente, nenhuma ilusão sobre a candura brasileira sobreviverá a estes últimos anos de ódio e intolerância. Temos uma história cheia de canalhices esquecidas ou camufladas, mas está sendo demais para a nossa hipocrisia este período concentrado de violência entre brasileiros. Os mesmos vilões nos arrancaram da confortável ficção de que poderíamos crescer sem deixar de ser inocentes, apenas como prêmio ao nosso tamanho e aos nossos bons sentimentos. Mas não parece haver dúvida de que será preciso pelo menos uma geração para deixarmos de nos enganar. E para voltar à hipocrisia. Publicado no Globo, domingo (8)