Durante
muito tempo cultivou-se o mito do Brasil como uma espécie de jardim de
inocentes num mundo conspurcado. Até no nosso autodesprezo havia um certo tom
triunfal de uma raça diferente esperando sua vez de entrar na História. Éramos
ineficientes mas simpáticos, atrasados mas cordatos, pobres mas engenhosos.
Assim como a Amazônia era a reserva de oxigênio do planeta, o brasileiro era a
sua reserva de candura. Conseguiríamos o milagre de nos transformarmos em
potência sem cometer nenhum pecado antibrasileiro, como o da violência ou da
insolência imperial. Nossos vilões nos roubaram este mito da amabilidade
congênita. Certamente, nenhuma ilusão sobre a candura brasileira sobreviverá a
estes últimos anos de ódio e intolerância. Temos uma história cheia de canalhices
esquecidas ou camufladas, mas está sendo demais para a nossa hipocrisia este
período concentrado de violência entre brasileiros. Os mesmos vilões nos
arrancaram da confortável ficção de que poderíamos crescer sem deixar de ser
inocentes, apenas como prêmio ao nosso tamanho e aos nossos bons sentimentos.
Mas não parece haver dúvida de que será preciso pelo menos uma geração para
deixarmos de nos enganar. E para voltar à hipocrisia. Publicado no Globo, domingo (8)